Passada a maratona de quatro dias de votações em 27 países, com cerca de 350 milhões de pessoas aptas a votar, os europeus confirmaram uma guinada à direita na eleição para o Parlamento Europeu, o único órgão eleito da União Europeia.
A extrema direita venceu de maneira contundente na França, onde o presidente Emmanuel Macron convocou eleições legislativas para junho, ficou em segundo na Alemanha e fincou posições na Áustria e na Itália.
A centro-direita, liderada por Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, segue como a principal força, mas sua margem de ação foi reduzida.
O principal abalo sísmico foi sentido na França: segundo as projeções, feitas com base em resultados preliminares, mostram que o Reagrupamento Nacional de Marine Le Pen e de Jordan Bardella, teve 31,5% dos votos, quase o dobro (15,2%) da coalizão da qual Macron faz parte.
Ao invés de lamentar a derrota, o presidente surprendeu até seus aliados ao dissolver a Assembleia Nacional e convocar eleições legislativas. Essa foi a primeira vez em que os resultados da votação ao Parlamento Europeu produzem um impacto tão contundente na política doméstica de um país, ainda mais na segunda potência econômica do continente.
— Não poderei, portanto, no final deste dia, agir como se nada tivesse acontecido. A esta situação soma-se uma febre que tem tomado conta do debate público e parlamentar no nosso país nos últimos anos. É por isso que, depois de ter realizado as consultas previstas no artigo 12.º da nossa Constituição, decidi lhes dar novamente a escolha do nosso futuro parlamentar através da votação — afirmou Macron em pronunciamento.
— A ascensão dos nacionalistas, dos demagogos, é um perigo para a nossa nação, mas também para a nossa Europa, para o lugar da França na Europa e no mundo.
A manobra é arriscada: alguns de seus antecessores que dissolveram o Parlamento viram a oposição (normalmente de esquerda) ganhar espaço, e até conquistar a maioria, como ocorreu com François Mitterrand e Jacques Chirac.
Mas hoje quem está do outro lado do campo político é uma extrema direita que tem ganhado espaço, força e, sobretudo, votos.
O Reagrupamento Nacional tem 88 cadeiras na Assembleia Nacional, e a líder da sigla, Marine Le Pen, disse após o anúncio de Macron que “está pronta para exercer o poder”.
— Estas eleições históricas mostram que quando o povo vota, o povo ganha — disse Le Pen, que na eleição presidencial de 2022, contra o próprio Macron, recebeu 13,2 milhões de votos, ou 41,45% dos votos válidos. — Depois das eleições legislativas de 2022, que permitiram designar o Reagrupamento Nacional como o principal adversário parlamentar [do governo], estas eleições europeias estabelecem o nosso movimento como a grande força de mudança para França.
A votação está prevista para o dia 30 de junho, e caso algumas disputas precisem de um segundo turno, ele ocorrerá em 7 de julho. Durante o pronunciamento, Macron afirmou que o resultado das urnas foi ruim “para os partidos que defendem a Europa”, e que a decisão de adiantar as eleições, previstas inicialmente para 2027, foi um “ato de confiança” no país.
Ainda na noite de domingo, o presidente se reuniu com integrantes do governo para discutir os próximos passos, além dos detalhes sobre a campanha.
Segundo lugar com “sabor de vitória”
Além da França, a extrema direita confirmou seu avanço na Alemanha, onde o partido Alternativa para a Alemanha (AfD), ficou em segundo nas urnas, com 16% dos votos e aproximadamente 16 cadeiras no Parlamento.
Em primeiro ficaram os conservadores (CDU e CSU), hoje na oposição alemã, com 30,3% dos votos e 30 assentos. O chanceler Olaf Scholz, alvo de pesados questionamentos dos alemães, sofreu uma derrota expressiva, com os Social-Democratas aparecendo em terceiro, com 14% dos votos e 14 cadeiras.
Ao comemorar o primeiro lugar, neste domingo, Friedrich Merz, principal líder do CDU, ressaltou que os resultados devem servir de aviso para que o governo federal reflita e mude sua política de Estado.
— Ganhamos a eleição para o Parlamento Europeu na Alemanha — afirmou. — Mas o resultado foi um desastre para partidos tradicionais.
Os números reforçam um fenômeno já estabelecido no país: o domínio do AfD no Leste alemão, onde a sigla obteve cerca de 27,1% dos votos, a frente do CDU, com 20,7%.
O partido lidera também as pesquisas de intenção de voto para as eleições estaduais de setembro em Thuringia, Brandemburgo e Saxônia, três estados da antiga Alemanha Oriental.
Na vizinha Áustria, o Partido da Liberdade teve, de acordo com as projeções, 27% dos votos, e deve dobrar sua presença no Parlamento Europeu, agora com seis cadeiras, deixando para trás o Partido Popular Austríaco (centro-direita) e o Partido Social-Democrata (centro-esquerda), que terão cinco cadeiras, e tiveram 23% dos votos.
Na Itália, a premier Giorgia Meloni, um dos principais nomes da extrema direita na Europa, viu o Irmãos da Itália ficar em primeiro, com até 30% dos votos, quase 10 pontos percentuais a mais do que o Partido Democrata, de centro-esquerda. Meloni se engajou na campanha, e chegou a concorrer como candidata, mesmo sem poder assumir uma cadeira caso eleita, de acordo com as regras europeias.
Na Espanha, onde o Partido Socialista, do premier Pedro Sánchez, ficou em segundo, atrás do Partido Popular, de centro-direita, o Vox dobrou sua votação em relação a 2019, com 10% do total, e pode ter até sete cadeiras.
Como apontou ao Globo professor de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo Kai Lehmann, apesar do avanço da extrema direita no Parlamento Europeu, não há sinais de que esses partidos estejam prestes a formar uma coalizão ampla e poderosa.
Ele aponta para as muitas diferenças entre esses grupos, e até para a exclusão de alguns deles do debate neste campo político.
— Houve recentemente uma ruptura nesse bloco, Marine Le Pen (Reagrupamento Nacional) disse que não iria mais trabalhar com o Alternativa para a Alemanha (AfD, que deve conquistar cerca de 15 assentos). Isso é ruim para esse grupo político, e será ainda pior para a AfD, porque significa que ela estará em um campo menor e ainda mais extremo, fechando a porta a vários direitos e à participação em comissões e postos — disse o professor da USP.
— Há também brigas internas nacionais, como entre [Matteo] Salvini [vice-premier] e Meloni na Itália, e ninguém sabe como isso vai impactar as eleições e depois das eleições.
Apesar dos avanços da extrema direita, e dos impactos que as votações tiveram no continente, a coalizão que comanda o Parlamento Europeu ainda é majoritária, embora com uma margem menor. Há cinco anos, o agrupamento de centro-direita, centro-esquerda e centro tinha 417 cadeiras em uma Casa com 705 assentos.
Segundo as projeções, o número deve ficar perto de 398 no plenário com 720 cadeiras. Entre as principais funções dos eurodeputados está a escolha do presidente da Comissão Europeia, o órgão responsável por elaborar e propor leis e medidas votadas pelos parlamentares.
Hoje, o posto é ocupado por Ursula von der Leyen, que celebrou a vitória do grupo supranacional Partido Popular da Europa, que engloba partidos de centro-direita, afirmando que se trata do sucesso do principal “bastião de estabilidade” do bloco.
Mas ela sabe que a tarefa de se manter no posto será mais difícil agora — para Lehmann, não está descartado um diálogo com a extrema direita, tampouco acenos aos conservadores, apesar dos riscos.
— Ela viajou muito para a Itália para se encontrar com Meloni, para falar sobre o novo pacto migratório da União Europeia, mas creio que ela não prestou muita atenção no impacto que isso causaria entre os Social-Democratas, que deveriam votar nela na falta de uma alternativa, e até de integrantes do EPP, do qual ela faz parte — disse Lehmann.
— Creio que a matemática ficou muito difícil, porque ela não conseguiu conciliar a abertura à extrema direita com o diálogo com outros grupos, dos quais precisa para se eleger. Não é impossível, mas é difícil.
Fonte: Agência O Globo
Foto: Julieb de Rosa/AFP
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