Uma viagem na garupa do motoclube brasileiro inspirado no código de liberdade e violência das gangues de moto oldschool

 

Dezessete motoqueiros tomam o pátio de um posto de combustível ao pé do Morro do Cambirela, em Palhoça (SC), km 222 da BR-101. Precisam de uma pausa. Até ali, foram 12 horas e 458 km de estrada. Os fedores de óleo, chuva e suor brigam com o cheiro de gasolina. Desembarcam sob olhares assustados de quem parece que viu fantasmas.

 

Os locais miram, na verdade, as caveiras no emblema das jaquetas dos motoqueiros do Senza Paura Moto Clube. O nome é uma abreviação de um suposto lema de guerra italiano, “Senza Paura, Per Onore”. “Sem medo, pela honra”, em tradução livre. Talvez por isso, entre cigarros e calados, eles ignorem esses olhares.

 

Origem com os Angels e a debandada

 

Diante de mim está um grupo orgulhoso de seguir o código dos Hell’s Angels, a gangue de motoqueiros dos EUA — grupo que ficou famoso por um longo histórico de vida na margem da lei, com armas, brigas e muita droga. Ali, diante deles e de suas facas na cintura, me pergunto o quão à risca seguem estes preceitos.

 

 

Eu fui convidado a descobrir. Era só embarcar na garupa rumo ao acampamento de fim de semana, no sul de Florianópolis — e me manter na linha.

 

Chove pesado do posto até Florianópolis, mas o Senza não afrouxa o pé. Estamos na ponta do trem — a formação de motos em duas fileiras. Cada ultrapassagem é um calafrio. Quando não há nada entre você e os carros ao lado, 80 km/h é outra coisa. A pele fria sente, é um giro só, e você dá de frente com a morte.

 

No túnel, tudo é mais alto e ninguém está à frente. A gangue urra e torce as chaves na ignição. Os canos estouram, como um incêndio em um paiol de rojões. Os motores zumbem, e pelos gritos do Senza, não são mais motos. Por uma fração de segundo, são moscas no ventre da besta.

 

As águas não dão trégua no acampamento Tubarão de Sunga. Os motores resfriam sob a chuva, e em muitas mãos, o Senza se atropela para puxar cordas, esticar lonas e içar barracas ante o vento do mar. Entre uma e outra foto, uma mão grande pesa em meu ombro, e, na minha frente, brota uma garrafa de cachaça.

 

“Bebe”, diz ele. “Cortesia da casa.”

 

O anfitrião é Matheus Ganzer, fundador do Senza Paura. Ele criou o Senza Paura em 2015, em Flores da Cunha (RS), após um encontro com os Hell’s Angels. Guiado pela biografia de Sonny Barger, pai dos Angels originais, Ganzer reproduziu as regras em seu clube, como forma de “experimento social”.

 

O clube, para ele, é a tentativa de construir “uma verdadeira democracia”, onde todas as vozes têm o mesmo peso. Os estudos foram o trabalho final de sua graduação em psicologia, na Universidade de Caxias do Sul. Durante a apresentação, metade da sala estava tomada pela gangue.

 

Com a aprovação do trabalho, a gangue comemorou tatuando, a muitas mãos e cachaça, um retrato de Ganzer na bunda dele.

 

Com sedes em Flores da Cunha (RS), Morro da Fumaça e Florianópolis (SC), os membros do Senza Paura veem o clube como algo muito diferente dos outros. Enquanto a maioria dos motogrupos pede modelos específicos de cilindradas, o clube que me recebe tem outro critério: a caminhada.

 

A caminhada é o processo de integração ao Senza Paura e define as patentes dentro do grupo. É divididaa em três níveis, do menor para o maior: soldatum, prospect e membro. Na prática, é quase como uma família — só que com ares militares, em que os mais velhos mandam e os mais novos obedecem.

 

 

Bala, o mais novo soldatum, oferece a Gunzer um isqueiro Zippo — “original da Guerra do Vietnã”, ele garante. Cinquenta reais. Bêbado, ainda não sabe como dividirá a vida de mestre Demolay com a gangue. Gosta do espírito rock, moto e bebida do clube — mas não da minha cara: “Tira essa franja da cara pra falar comigo!” Mas Ganzer desescala: “Ei, novato. Menos.”

 

Bug, um dos mais velhos, ordena a um soldatum que conecte a caixa de som na única tomada ao lado da churrasqueira. A entrada está bloqueada por um plug podre. O novato tenta tirar com sua faca, e aquilo tem cara de que vai dar merda. A tomada explode, e ele grita. E depois, sorri, num sorriso indistinguível entre orgulho e tensão do choque.

 

Quis entender o que leva adultos independentes dizerem sim-senhor para uma hierarquia artificial. Para Catêeme, aquilo transformou sua vida. “Eu era muito porra-louca”, afirma. “Quem me conhece hoje nem reconhece direito, de tão organizado que sou.” Ex-morador de rua, conta que o clube mudou sua vida — que o ajudou até a comprar sua moto, uma KTM 250, de onde herdou seu apelido.

 

O clube interrompe a música alta para uma cerimônia oficial. É o batismo de Gab, prospect do clube há dois anos. Livros sobre os Hell’s Angels falam do batismo feito ao cobrir o integrante em um balde de dejetos. No caso do Senza Paura, a coisa é mais leve: cobrem de cerveja e cintadas nas costas.

 

Com as costas ardendo e segurando o vômito, Gab precisa costurar o patch do clube com agulha e uma linha fina. É assim de propósito: um gesto errado e o clube confisca o título num puxão só. “Para sentar à mesa é preciso servir primeiro”, Gab responde, no que diz ser o dia mais feliz de sua vida.

 

Os membros reúnem os novatos para a prova de história — uma série de perguntas sobre o legado do Senza Paura. Quem errar, bebe. Meia hora depois, é difícil saber o que é lodo e o que é vômito nas solas dos calçados.

 

Um dos integrantes, que prefere não se identificar, conta que é o apego à honra e à história que separa o Senza Paura do resto. Ex-integrante de outro grupo, ele deixou-o após um superior o envolver, sem aviso, em tráfico de drogas. “O pior de tudo? Ele disse que era parte da caminhada.”

 

O Senza Paura proíbe atividades criminosas. No entanto, há uma exceção à regra: as brigas. Seja com mal-encarados ou baderneiros, o clube já teve briga de trancar uma rua inteira.

 

Para muitos deles, é difícil entender a raiz da violência. Bug, nascido em Caxias do Sul, conta que, desde mais novo, sair significa se preparar para o pior. “Nunca quis entrar nessas. Mas a primeira vez que tomei uma surra foi no banheiro do cinema. Eu tinha 13 anos, fui ver o filme do Homem-Aranha.”

 

A melhor forma de inverter isso, eles me contam, são as facas. Certa vez, no banheiro de um bar, oito caras fecharam três membros do Senza. A briga só parou quando um deles sacou a faca e talhou a cara do inimigo, de cima a baixo, num corte só.

 

No dia seguinte, a gangue ronca os motores para levantar quem dorme. O sol, ameno, parece de ressaca. Antes de partirem, um dos membros do clube manda um áudio pelo WhatsApp: “Te amo muito, querida. Saudades.” E depois dá de ombros: “Minha filha tá lá, mas também não consigo ficar sem isso aqui. É a minha vida.”

Fonte: UOL
Foto: Gabriel Daros